A Questão Espírita do Aborto

terça-feira, 13 de julho de 2010

A questão do aborto é tormentosa, porque mexe com uma profunda angústia humana: não temos ainda um conceito definitivo de vida.

É verdade, não faz muito tempo, realizamos grande façanha, mapeando os genes humanos. Deciframo-nos biologicamente, mas ainda não fomos capazes de decifrar o enigma da vida.

Seu conceito reclama um enfoque multidisciplinar e, se uma síntese um dia for possível, necessariamente será fruto de amplo acordo entre a Ciência e a Filosofia. Um feito bem mais importante do que o festejado mapeamento do genoma humano.

Podemos dizer que todas as nossas inquietações em torno da vida e da morte derivam desse vácuo, do fosso de ainda não nos havermos decifrado. Dois mil e quinhentos anos pós-Sócrates, não fomos capazes de atender sua conclamação de conhecermos a nós mesmos.

O início e o fim do que convencionamos chamar VIDA, para efeitos biológicos e jurídicos, nem sempre têm fechado com aquilo a que nossas experiências e perquirições filosóficas nos têm conduzido.

Legitimamente, permitimo-nos ajuntar outros fatores ao conceito de vida, os quais extrapolam o campo da Biologia e não são levados em conta pelo Direito positivo.

Faz bem em desconhecê-los o Direito. Não lhe restou outro caminho. A modernidade colocou-nos num terrível dilema. Tendo ela sucedido a um longo período em que a Filosofia se tornara serva da Teologia, o homem moderno precisou optar entre o conhecimento científico, provisório e mutável, e os dogmas impingidos como definitivos e imutáveis. A vida, assim, dicotomizou-se no sagrado e no profano. Nesse partilhamento, as questões do espírito passaram ao domínio da religião, e as da matéria, em que aparentemente se situa a vida, foram confiadas à gestão da sociedade politicamente organizada.

Estavam demarcados os dois campos em que se movimenta a modernidade: a visão religiosa e a secular. Mas quem disse que o espírito é propriedade da religião? Muito antes desse apossamento, a Filosofia cuidara dele com melhor competência.

Há, na história do pensamento, rica tradição filosófica iniciada com Sócrates e Platão e que fluiu, na modernidade, com o pensamento de filósofos idealistas. Nela, cuida-se da realidade humana, justamente a partir do espírito e se sintetiza aí a mais íntima e ampla identidade humana, de conformidade com Kant, Schopenhauer, Leibniz, Espinosa e tantos outros. Na literatura, fizeram-lhes coro Shakespeare, Victor Hugo e muitos mais.

Por que desprezar essa contribuição? Por que a falta de coragem de enfrentar o materialismo científico pós-moderno, permitindo-nos indagar sobre o homem a partir daquilo que lhe é mais real, vivo e concreto: o espírito? Comodamente, tachamos tudo o que a ele se refere como coisas da religião, pertencentes aos imperscrutáveis domínios da fé.

No século 19, atento a essa tendência, um pedagogo francês propôs a realização dessa síntese no que denominou espiritismo. No Brasil, a proposta encontrou excelente ressonância, mas não deixaria de sucumbir à avassaladora dicotomização a que se submeteu toda a realidade humana.

Como tinha de escolher um lado, assumiu a condição de religião. Perdeu com isso. Sempre que temas tão importantes, como o do aborto, vêm à baila, é levado de roldão a associar-se às atitudes mais retrógradas e fundamentalistas na suposição de que essa é a melhor companhia para seus postulados filosóficos em defesa da vida.

Não é. O espírito, como realidade fundamental, sugere atitudes de humanismo que não se compatibilizam com os dogmas religiosos. Leva, por exemplo, a admitir que, no processo de gestação da vida biológica, podem se contrapor direitos naturais de diferentes sujeitos, como a gestante e o nascituro. E que não é justo sacralizar os de um em detrimento dos do outro. Como o faz a fé.

Não só entre os espíritas, mas disseminadas por toda a sociedade, pessoas orientam suas posições diante da vida a partir da realidade fundamental do espírito como entidade preexistente à vida física.

Defendem que essa condição, diversamente do dogma religioso da criação da alma no momento da concepção, conduz a atitudes mais tolerantes e humanistas. Vislumbram no fenômeno da vida um processo dinâmico, teleológico, que, em qualquer circunstância e malgrado acidentes de percurso, conduzirá a um estágio de felicidade e plenitude a que todo indivíduo tem direito.

Mas os que assim pensam restaram condenados ao silêncio. Não são chamados a opinar sobre as grandes questões da vida, porque o espírito foi seqüestrado pelo formidável conluio pós-moderno materialismo/religião.

Rafael Vitoreti

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