O Rei Justo

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Sintetizo uma lenda lembrada por Rui Barbosa e que Alfredo Buzaid usou como peroração em um dos seus famosos discursos.

O Imperador Alexandre, nas suas conquistas, foi dar em uma região florida e alegre. Simpatizou com o povo especial que ali habitava e pretendeu conhecer-lhe a vida, sobretudo a respeito de que maneira o soberano distribuía a justiça. Foi, por isso, fazer uma visita ao rei e assistiu ao seguinte episódio.

Procuravam o rei dois súditos. O primeiro declarou que havia comprado do outro um terreno para nele edificar uma casa, mas ao cavar o chão deu com um tesouro de ouro, prata e pedras preciosas.

Entendendo que o tesouro pertencia ao antigo proprietá­-rio, intentou devolver-lhe. O segundo súdito, no entanto, afirmou que tinha receio de ficar com o que não lhe pertencia. Afinal, havia vendido o imóvel com tudo que ali se continha.

O rei meditou e dirigiu-se ao primeiro: – Não terás um filho? – Sim, respondeu o súdito.

E para o segundo: – E tu, não terás alguma filha? – Graças a Deus, sim.

Decidiu o rei: – Vede se os dois não quererão desposar. Caso o queiram, dai-lhes em dote o tesouro. Se não, dirigindo-se ao primeiro, soterra de novo essa riqueza no sítio onde te deparara e edifica aí a tua casa.

O imperador manifestou a sua estranheza e disse que em sua terra o caso seria resolvido de maneira diferente: ambos os pleiteantes seriam exilados e o tesouro confiscado.

O rei ergueu os olhos para o céu e voltou-se para o macedônio: – E luz o sol em tua terra? E chove sobre ela? – Sim, assentiu o Imperador.

Replicou-lhe o rei: – Então é para as alimárias do campo que cai a chuva e alumia o sol em tua terra. Porque homens embusteiros e injustos não são dignos dos benefícios do céu.

Quais as lições desta lenda? O macedônio é o símbolo da violência. O rei é o espírito de justiça. O conquistador trata os homens como párias da sociedade. O rei deles cuida com igualdade e dignidade. O macedônio sacrifica a paz social em benefício dos bens materiais. O rei sacrifica os bens materiais em benefício da paz social.

Nos tribunais e nas escolas de direito, nas sentenças e nas aulas, na criação doutrinária, na escritura de livros jurídicos, nas petições, nos memoriais, nas sustentações orais, o jurisconsulto ou o advogado, o juiz ou o professor, o delegado de polícia, o membro do ministério público, onde quer que esteja o sacerdote do direito, em qualquer dos seus templos, deve ter em vista a justiça, abominar o conquistador e cultuar o rei justo.

A paz social vem antes de tudo, com ela a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A aplicação do direito há de ser sempre um exercício da prudência, da fronésis grega, do equilíbrio para harmonizar interesses, não para exacerbar os conflitos. A luta pelo direito é incompatível com a guerra, com a desordem perturbadora da paz social, com a luta de classes, com a revolução, com a movimentação social desenfreada e incitada pela ideologia. O progresso social do direito resulta da atuação do rei justo, não do conquistador alienígena ou pátrio. O conquistador é o símbolo do Estado ganancioso para arrecadar e perverso para com o povo e as pessoas. O rei justo é o direito encarnado na autoridade, que se fundamenta na lei natural refletida na razão humana. O impulso irracional na busca do humano representa um grande risco, ainda que se intente uma justiça subjetiva qualquer, e pode gerar a tirania. Até as revoluções, exploradoras das contradições sociais e econômicas, fundadas na ação, sem limites éticos ou espirituais, para a transformação do mundo na direção de um novo regime político, não obstante eventual arcabouço doutrinário, representam um caminho estranho à seara jurídica.

Não se aplique, aqui, o argumento da resistência aos governos injustos, porque ela jamais pode resultar na concreção da violência. Hoje, o desprezo pela lei ou o julgamento da sua bondade, por motivações políticas, ainda que explicáveis, refletem o arbítrio do conquistador, mesmo revolucionário, não o rei justo da prudência e da paz.

Rafael Vitoreti.

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