Direito e Religião (Um grande dualismo)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A modernidade cometeu dois graves equívocos em relação ao direito. Tentou separá-lo da moral e, mais grave, extremá-lo da religião. O tema nada tem que ver com a laicidade política, fruto da revolução republicana. O Estado pode continuar laico, mas o direito não se concebe no quadro exclusivo do positivismo. Fenômeno histórico e cultural, o direito esteve sempre impregnado de religiosidade. Jamais houve, na Antigüidade, o divórcio entre direito e religião, até porque ambos são fenômenos culturais. A cultura, segundo a teoria a que adiro, tem origem religiosa, pelo menos na perspectiva ocidental, greca-romana-germânica, sintetizada no Cristianismo. Desde tempos imemoriais, a cultura foi sempre o oferecimento divino ao homem de um quadro de potencialidades (die Bildung), tal como ocorreu com Abrahão em Ur, na Caldéia, antes de seu retorno ao lugar sagrado de origem. O surgimento da cultura dá-se sempre por epifanias e hierofanias, reveladoras de uma cosmogonia.

Fustel des Coulanges escreveu um livro (A Cidade Antiga), lido pelos estudantes no começo do curso de Direito, onde se demonstra que todos os institutos jurídicos derivam da religião. A própria família estava ligada às crenças religiosas e aos ritos sagrados dela inseparáveis. Em lugar do "materialismo histórico", há uma "espiritualidade histórica". A história não estuda somente os fatos materiais e as instituições. Seu objeto verdadeiro consiste na alma humana, no que ela acreditou, pensou e sentiu nas diferentes idades da humanidade. O que domina a família e as "cidades antigas" é a religião. Cada família possui os seus deuses lares. O fogo doméstico não é uma metáfora, mas uma realidade. O culto de uma família não se confunde com o das outras. A religião antiga e familiar não aceita o outro pela fraternidade. O outro é um estrangeiro. Os agrupamentos das famílias em gentes, clãs, tribos, ensejam a cidade, mas esta só é possível pelo reconhecimento de deuses comuns. Cada povo tem seu Deus e o seu direito. Desde os tempos de Abrahão, o povo dos hebreus foi mais do que uma raça, porque a ele se podia agregar pelo rito da circuncisão. Pertencer a um povo significava estar sob a proteção de um Deus e submetido a um direito, revelado pela divindade.

Foi o Cristianismo, em sua ecumenicidade, que universalizou o direito, na ação revolucionária de São Paulo: todos são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo; não há mais judeu nem grego, nem escravo nem homem livre, nem homem nem mulher, porque todos não são mais que uma pessoa em Jesus Cristo, descendentes de Abrahão, segundo a promessa. Essa catolicidade encontraria o ambiente perfeito no Império Romano, vale dizer, na expansão do próprio direito de Roma, não apenas revelado pelos colégios sacerdotais, marcado pela necessidade de colherem-se auspícios, como também consistente (o ius publicum) nas coisas sagradas, nos sacerdotes e nos magistrados.

O direito, na sua gênese e concreção, há de considerar a religião, sob pena de fugir à realidade da vida. Não há muito, houve uma experiência política, em larga escala, que, durante décadas, procurou, com todo o rigor ideológico, afastar a religião da sociedade na qual atuava, atribuindo à religiosidade todos os males sociais. No entanto, como Bóris Pasternak, nos poemas do Dr. Jivago, previu, o grande degelo revelou os templos repletos de pessoas.

Por fim, o direito é obra humana, embora concebido como dádiva divina, e o homem não é somente um ser racional, livre, social, existencial, mas, também, um ser religioso.

Atônito, assisti um professor de direito, afirmar em uma comunicação em seminário jurídico que estávamos ali apenas para oferecer novas considerações para o debate, até porque ninguém é dono da verdade como ela, a rigor, não existe.

Certo que ninguém pode apresentar-se como senhor da verdade e que a própria filosofia com ela não se confunde, sendo, ao contrário, a sua busca incessante.

A posição pirandeliana de uma verdade subjetiva – cosí è si vi pare – assim é que se lhe parece – vale para os assuntos mundanos das peças de teatro, não para as coisas fundamentais da vida, nem para afastar a verdade dos mistérios e da presença do absoluto.

Comecei logo a lembrar-me dos ensinamentos de Goffredo Telles Jr., da adaequatio intelectus ad rem (a verdade formal, a verdade do juízo, a verdade racional) e a adaequatio rei ad intelectum (a verdade ôntica, a verdade do próprio ser, a verdade do ser como algo ideal). A verdade ôntica é a própria beleza: o ser conforme a sua perfeição. Compreendi logo a crítica de Ratzinger ao relativismo, na véspera de sua eleição a Sumo Pontífice. Lembrei-me de Keats – a thing of beauty is a joy for ever. E que o direito como arte (técnica) consiste na busca dessa verdade, que é a justiça que se consuma na movimentação dos juristas em torno da doutrina, vista como um diálogo crítico permanente.

No direito, a verdade também se impõe sem relativismos. Em face de nossa decadência evidente, muitos dizem que esta ou aquela causa pode ser julgada de uma ou outra qualquer maneira; que os juízes dizem o que querem; que pareceres podem ser neste ou naquele sentido oposto; que tudo depende da interpretação. Mas essas diatribes são próprias do fórum, não do direito como arte e como conhecimento do bom e do justo.

Ora, o direito pode ser errado ou não atender aos reclamos de nossa consciência moral, mas precisa ser certo. Entre interpretações divergentes, há uma que é a correta. A opinião vencida pode ser a mais certa (lembremo-nos de Holmes, o great dissenter). O direito se constrói pela dogmática histórica, não pelo ceticismo que afasta a possibilidade da verdade.

Até mesmo quando se diz que quod non est in actis non est in mundo não se está admitindo uma verdade fora do processo, mas tão-somente que os autos contêm elementos suficientes para chegar-se a uma verdade processual, formal, que, na grande maioria das vezes, uma vez observados os princípios democráticos do processo, está conforme à verdade real.

A própria idéia da coisa julgada, como insubstituível garantia da estabilidade das relações jurídicas processuais, não se alicerça no famoso brocardo res iudicata pro veritate habetur, porque ele no direito romano não se referia à sentença do iudex ou arbiter, mas ao bem da vida em discussão, o qual o pretor considerara relevante para justificar o exercício da jurisdição.

Rafael Vitoreti

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